sábado, 23 de maio de 2015

TPM?

Não tenho mais TPM (suponho, né? rsssssssssss), mas sinto desagrado, raiva e impaciência como sempre senti. É da minha natureza ruim.

A única diferença, agora, é que demonstro - através de palavras ou gestos -  coisa que antes, há uns bons pares de anos, não fazia. Ficava quietinha e engolia o sapo. Talvez por isso alguém tenha dito que não me conhece mais, que eu mudei. Mudei sim, graças a Deus! Porque tudo o que arrumei com o meu silêncio, com o meu ficar quietinha e não demonstrar meus desagrados e feridas, foram uma esofagite, uma hérnia de hiato, uma diverticulose e uma alergia respiratória sem tamanho! Fazer o quê, agora? Tô pagando o preço de uma escolha passada.

Mas pode haver problema em falar o que sentimos: corremos o risco de falar demais, sermos mal interpretados (porque cada um tem a sua verdade, como já conversamos anteriormente) e, até com as nossas verdades, ferir a quem amamos! Daí termos que aprender, também, a calar! Uma bosta, né não?
E vamos vivendo sempre entre essas duas escolhas: falar ou calar. Colocar as duas coisas meio a meio é, talvez, o ideal, mas... como saber onde está o meio entre duas ações opostas? Como saber se já se falou o suficiente para, então, calar?

"Também sinto que o meu coração ficou mais resistente, Helena e isso, quando me permito pensar a respeito, me deixa triste: eu não era assim! Então começo a conversar com meus botões e me repito várias vezes que não é justo regredir por conta de algumas pessoas! Não posso permitir que isso me aconteça, a vida é movimento de evolução! E é assim que vivo a vida: refletindo sempre, não sendo hipócrita comigo (assumo minhas broncas, minhas raivas, minhas decepções, meus erros) e sendo melhor no que vai dando. Mas tb não me afobo: se der pra ser melhor, ótimo, se não der, me dou um colinho e me digo 'calma, Cléa, vc está em processo, você chega lá!', não é isso, querida?"

 Dou-me colinho sim. Às vezes preciso e nem sempre quem está ao redor percebe. E não sou de pedir. Tenho essa enorme dificuldade! Quando era mais jovem, fazia que nem cachorro carente: abanava o rabinho, dava uns pulinhos, uns latidinhos, sempre que recebia um agrado. Já não sou tão cachorro assim. Então, como diz a minha amiga Ly Sabas, lambo as minhas feridas pacientemente! Depois das lambidas, me afago, procuro me entender - porque sei que sempre há um motivo por trás de uma atitude ou sentimento, até quando se diz "sei lá porque fiz isso, agi naturalmente!". Nada (penso eu, claro) é naturalmente.
Ah, mas estou fugindo da minha ausência de TPM!!! Rssssssssssssss
Na verdade, nem sei se tive TPM! Lembro-me de cólicas imensas, enjôos medonhos, dores insuportáveis nos seios e nas pernas... se eu ficava irritada nessas ocasiões, não era sem motivo, vamos combinar, né não? Comecei esse texto falando da dita cuja porque alguém muito querido me perguntou (ao me ver irritada com um acontecimento): "Cruzes, tá em TPM?" e tentei explicar que nunca fora cega, surda ou muda, eu sempre observava e pensava sobre as coisas que aconteciam ao meu redor, mas, em casa, especialmente em casa, quase não me expunha. No trabalho, não. Falava, questionava, indagava, reclamava. Lá, eu encontrava debatedores. Alguns até se opunham contra alguma posição ou fala minha, mas não me tiravam o direito de expressão. Já em casa, embora nos amássemos muito, havia um respeito forte que me impedia de falar muitas coisas que pensava. E que consegui soltar, aos poucos, muito tarde...
Daí que... procuro temperar, atualmente: nem me calo muito, nem falo demais. Mas erro, né? Às vezes falo o que devia guardar e guardo o que merecia falar. E essa história de coração resistente não me agrada. Acontece. Porrada enrijece. Deslealdade maltrata. Mas, nem todo mundo dá porrada, nem todo mundo é desleal, nem todos lhe traem. Em nome deles, desses que me amam (sim, eu sou amada!), tenho posto mais meu coração de molho: me dou colinho, me desculpo (me perdoar é mais difícil, chego lá!), bato longos papos comigo (quando dá, em voz alta) e sigo.
Afinal, como dizem, se estou viva, a missão continua!

 Cléa Siqueira















 

sexta-feira, 17 de abril de 2015

Eu entendi...




...tudo errado! Justo eu, que me julgo espertinha!
Entendi... que você me procurava porque confiava em mim, confiava nas nossas conversas, validava as minhas opiniões à cerca da vida. Entendi... que me procurava porque queria um conselho, um esclarecimento, uma palavra que lhe desse um norte, uma clareza para tomar uma posição naquele mar de dúvidas. Entendi... que tinha dúvidas! Que se desnorteara, que julgava já não saber o sentido das relações humanas, da importância dos afetos em nossa vida. Entendi... que pensava desconhecer o que era, de fato, afeto!

Entendi... tudo errado! Você apenas brincava de ser gente! Você se aproveitava da minha velha arrogância disfarçada de "sei mais um pouquinho da vida"! Algo parecido (se é que não era mesmo isso) com: " Se ela acreditar na minha fragilidade emocional, na minha confusão interior, com certeza me apoiará! E sei que posso enganá-la, é crédula demais no homem que me exibi nesses anos: responsável, provedor, promissor! Acreditará!" e estava certo porque, de fato, acreditei em você!


Mas, naqueles minutos de conversa (e ainda por uns dias), senti-me como se fosse simples platéia. E não entendia o porquê de sentir-me assim! Atribuí, à sensação que me invadia, o fato de não querer aquela situação, de não acreditá-lo capaz de roer a corda, de saber da sua promessa feita há quinze anos, de tê-lo ouvido com atenção por muitas vezes. No entanto (que pena!), estava certa no modo como me senti e sentia: eu era apenas a platéia! Aquela platéia que você escolhera, a dedo,  para angariar a posição de "certinho": o pobre coitado que desiste porque cansou de lutar bravamente e por muito tempo. Que triste isso! E como dói descobrir que fomos utilizados para propósitos tão frios!


E lá se vão mais de dois anos desde então, desde que você posou de bom moço! Aquele bom moço que usa os ouvidos dos mais velhos, dos mais experientes, dos mais... tolos para o seu discursozinho de infeliz (que só se tornou assim, infeliz, quando o dinheiro, que podia diverti-lo, tinha que ser partilhado e o tempo, que poderia dedicar à sua diversão, era exigido pela família que crescia!). Dois anos depois ainda não encontrei outra versão para você. Frio, dissimulado, vaidoso. Como disse um amigo meu que o conhece (quer dizer, ninguém mais o conhece, supomos um dia que o conhecemos): um homem que comeu gelo! 


Cléa Siqueira

sexta-feira, 9 de agosto de 2013

Simples assim



       Estávamos, eu e minha neta, há quase uma esquina para chegarmos à praça. Aliás, não falei ainda dessa praça que fica no centro do bairro em que moro. Praça de subúrbio abandonado, onde a própria população vai  ajeitando e encontrando a forma de convivência com as tristezas, ausências, misérias e mazelas locais. 
     Há uns anos atrás, um modesto quiosque de venda de plantas instalou-se numa das arestas arredondadas da praça, que tem a forma de um triângulo retângulo, mas com suas quinas  arredondadas, uma mais do que as outras duas. E foi como se um minúsculo coração começasse a pulsar naquele canto: a sujeira diminuiu (afinal, os donos do quiosque passaram a varrer aquela parte) e até o cheiro de urina (dos passantes noturnos) pareceu diminuir. Ficamos assim por um bom tempo: preferindo, é claro, olhar somente para esse canto da praça. Do lado oposto ao quiosque, rente ao meio-fio, forma-se uma fila de táxis amarelos com faixas azuis - que raramente ligam seus relógios para alguma corrida: de um modo geral, o preço é dado no tiro, ou seja, combinado (de palavra, antes do embarque, ou assustado, ao fim da corrida!). Na quina localizada do mesmo lado que o quiosque, só que na outra extremidade da praça, fica uma espécie de "ponto" de frete: umas Kombis caindo aos pedaços, com seus motoristas barrigudos e praticamente ociosos, que ficam ali, na paquera de algum necessitado de um carreto pelas redondezas (que se submeta ao risco de um tétano naquelas ferragens ou um "já-começa" contraído na sujeira de seus estofados rasgados e de molas saltando).
     Mas a praça, atualmente, está mais bonita. O quiosque fez o milagre da multiplicação: foi espalhando vasos de coqueiros e outras espécies que não sei o nome, por quase metade da praça dando-lhe um outro astral! E, ao fim da tarde, lá pelas cinco, cinco e meia, entrando no lusco-fusco da noite que se anuncia, surge, não se sabe de onde (eu pelo menos não descobri, ainda!) um monte de mesas e cadeiras de bar que completa os vazios que as plantas não ocuparam. E aquelas mesas se enchem de gente que vem do trabalho, que marca encontros, que joga conversa fora, que ouve músicas de gosto variado, que bebe cerveja, cachaça, refrigerante, vinho, degusta salgadinhos, hambúrgueres, churrasquinho, fuma, paquera, discute, ferve, vive, esquece, adormece, sobrevive.
       Voltava com minha neta de quase nove anos por volta dessa hora (e, confesso, sinto-me segura por ali, naquele burburinho, naquele chega-chega de gente).  Atravessei a rua e entrei na praça passando pelo ponto dos fretes. Mais três, quatro passos e quase esbarrei em uma churrasqueira sendo improvisada e um cheiro de tempero avinagrado entrando em minhas narinas junto com o cheiro do carvão queimando. Sou boa de cheiros. Mesmo tendo fumado feito uma caipora por tantos anos! Esther me perguntou alguma coisa que não entendi. Fiz cara de tartaruga: encolhi os ombros, mas estiquei a cabeça (deu pra entender a tartaruga?).
       - Hã? O que, minha querida? Não entendi...
       - Vó, o que é c***lho?
   Preciso dizer que quase engasguei? Minha cabeçorra rodou! Como explicar o que é c***lho para uma menina  que é filha de uma mulher que só após os vinte anos, e bordoada, disse seu primeiro merda???? Ah, mas minha neta tinha perguntado pra mim, né não? Então eu tinha que responder e sem nhém-nhém-nhém! Para ganhar tempo, perguntei:
       - O que você disse mesmo, Esther? Repete.
       - Eu quero saber o que é c***lho, vó!
      - Ah, c***lho? Onde é que você escutou esta palavra? (Ainda ganhava tempo, claro!).
       - Ali, quando a gente passou na esquina... um homem tava falando pro outro...
       Olhei para trás, para a tal esquina, como se fosse ver o dito cujo parado, rindo pra mim. Não o tal homem que falara o tal nome, mas o próprio dono do nome! Rsssssssssssssssss
      - Bem, querida, vamos ver... c***lho... é o piruzinho, o pintinho, o bigulim dos meninos! Que, aliás, você já aprendeu que o nome correto é pênis, né?
       - E por que as pessoas falam assim?
      - Ah, é um nome mais esculhambado sabe? Na verdade, quando eles falam assim nem estão pensando no pintinho, eles falam pra expressar uma raiva ou pra brincar, mexer com alguém e deixar essa pessoa sem graça! É o tal do palavrão que se diz! Que não é bonito de dizer e muito menos uma coisa educada de falar, mas vou confessar uma coisinha pra você: às vezes eu falo um palavrãozinho...
        Bom, aqui, fui interrompida:
       - É, vovó, eu já havia percebido... - e deu um sorriso doce e compreensivo, aquela coisa de cúmplices.
     Respirei aliviada: missão cumprida, saíra-me bem!
       - E o que é p*rra, vó?
     O quê? Ainda não acabara? Eu pensando que tinha me safado, pensando que explicar c***lho havia sido difícil, mas agora estava era f***da! Valei-me! Ah, quer saber? Como diz meu marido: "O que é um pum pra quem já fez cocô nas calças?":
      - Esther, p*rra é o que sai do c***lho!
      Simples assim. Líquida e certa.
      - Xixi, vó? - A cara dela nesse momento fez-me sentir uma boboca! Parecia que eu dissera a coisa mais estapafúrdia do mundo!
      Respirei profundamente:
    - Não, meu amorzinho, não é xixi. Olha só, da totoquinha (é, minha filha ensinou à filha que a vagina é vagina, mas na intimidade é totoquinha) sai o xixi, mas também sai a menstruação, não é?
      Sei que ela sabe disso por ter, desde novinha, visto as trocas de absorventes da mãe.
      Ela assentiu com a cabeça, fazendo balançar aqueles lindos cabelos castanhos que possui.
     - Então é isso: da totoquinha sai xixi e menstruação e do piupiu sai xixi  e p*rra! Aliás, o nome certo da p*rra é esperma e é no esperma que estão as sementinhas do pai que vão se juntar com as sementinhas da mãe para fazerem os bebês! Certo? Entendeu?
      - Claro, vó! Mas é palavrão, né?
      - É, é palavrão, querida, não se deve falar, mas, às vezes, escapole!
      Então, como criança quando está com suas curiosidades satisfeitas muda de assunto, foi o que ela fez!
      - Vó, a gente já está chegando em casa, dá pra parar na padaria e comprar um sorvetinho?

Cléa Siqueira

sexta-feira, 19 de julho de 2013

Ficarei tensa?



              - Você não pode beber tanto café assim, vovó!
       Olhei para o meu marido, olhei para Miguelito, puxei o ar e perguntei-lhe surpresa com o comentário:
       - Ah, não? Mas eu não bebo muito, só uma xícara pela manhã e outra ao fim da tarde!
        Ele, com aqueles seus olhos grandes e lindos, duas azeitonas verdes atentas, respondeu-me:
          - Mas não pode: você fica tensa!
        - Como é que é, Miguel? - aqui, segurei o riso, fiz cara séria e preocupada.
       - Eu vi, no desenho do Pernalonga!
      - Desenho do Pernalonga? Como é que foi isso, meu filho?
        Então, aquela boquinha de cinco anos, rosada e cusparenta, pela pressa em me contar, mexia rapidamente descrevendo uma explicação enlouquecida. E fazia bicos que pareceriam botões de flores, mimosas florezinhas quase vermelhas. Criança tem isso: desenha flores e anéis com os lábios miúdos, magros ou rechonchudos.
         Levantei-me da mesa e coloquei minha louça suja sobre a pia. Voltei a sentar e a prestar atenção no meu homenzinho: jamais o deixaria, nem a qualquer criança, com um discurso no ar. Perguntei-lhe:
     - Quer dizer que o desenho do Penalonga ensinou a você que o café deixa a gente tensa? Ele ficou tenso, Mig?
     - Foi assim, vó, o Pernalonga tava muito estressado e foi no médico, aí o medico perguntou pra ele se ele tomava muito café...
     Interrompi o menino, faço isso às vezes, uma bosta! Rssssssssssssssssss
       - Já sei, o Pernalonga falou que sim!
      - É, falou! Isso mesmo vó, você sabe! Você viu esse desenho também?
     Pega com as calças na mão, confessei meu crime:
       - Não, meu querido, não vi o desenho, estava só me metendo na sua história, desculpa, tá?   Mas me conta o que o médico falou depois pro Pernalonga estressado?
       - Ele falou que o Pernalonga tinha que parar de beber café porque o café tinha uma substância chamada cafeína que deixava todo mundo tenso! Viu? - disse ele com os olhões arregalados - Você tem que parar de tomar café! Não faz bem pra sua saúde, vovó! Você vai ficar tensa!


                  Miguelito, e sua mãezinha, quando tinha uns oito meses e seus olhos eram azuis.
                                           
      

Miguelito atualmente, com seu olhões verdes azeitonados. Às vezes, dependendo do dia, estão, como ele diz, verdes como os olhos do Ben 10!

       O melhor de tudo, é que não haverá café que me torne tensa com o bem que essas sacadas do Miguelito fazem comigo: diversõess e risadas frequentes desestressam qualquer pessoa, né não? Rsssssssssssssssss

       Cléa Siqueira


domingo, 2 de junho de 2013

Retribuindo bençãos



       Pouquíssimas vezes levei minha primogênita à escola: pegava muito cedo no trabalho e minha irmã Clara fazia a delicadeza de levá-la quando levava os seus filhos, já que morávamos na mesma rua. Até reunião de pais era complicado! Ela assistia e me passava as informações. Em algumas poucas ocasiões consegui, como na comemoração do primeiro Dia das Mães quando Danielle estava no Jardim de Infância. E também quando fui levá-la até o portão da escola para o primeiro passeio escolar: visita ao Jardim Zoológico! Foi um dos piores dias da minha vida! Fui a primeira mãe a chegar naquele portão, ao fim da tarde, para aguardar a chegada dos ônibus (eram três). Foi uma agonia: nunca que apareciam lá, no fim da rua, fazendo a curva! Ufa, foi de doer mesmo!
       Nessa época eu dava aulas para uma turma com dificuldades de aprendizagem, o que me abatia demais. A turma era distinguida por uma sigla : EE (Ensino Especial) e o aluno dessa turma era classificado como AE (Aluno Especial). O método de alfabetização usado era o de Palavração (para quem não é professor, uma explicaçãozinha ligeira: consiste em fazer o aluno aprender primeiro a palavra, repetidamente, até que ele perceba que palavras são feitas de pedaços chamados sílabas que, por sua vez são formadas por pedaços chamados letrinhas!). Bem, ensinava a palavra MÔNICA (era a "heroína" da cartilha!) por toda a tarde e, no dia seguinte, parecia que NUNCA havia escrito ou falado tal palavra. Isso por meses. Sem falar que fediam a urina, viviam com catarro verde escorrendo, ou prestes a escorrer, narinas abaixo, chegavam famintos, eram extremamente agressivos ou indiferentes, até mesmo alheios, alguns, como se congelados. E claro que o Curso Normal - pelo menos o da época que fiz - sequer mencionou que seria possível uma turma com essas características na escola, no meio de toda aquela "normalidade" para a qual fomos bem preparadas em nossos estágios e aulas práticas! Portanto, aquela realidade foi um baita susto para mim! Como também foi um enorme presente que trago aquecido no meu coração, bem grata, desde então: mudou muito minha perspectiva como profissional, ser humano e mãe!
       A minha caçula teve mais privilégios: na época em que foi para o Jardim, eu já dava aulas para o segundo segmento do primeiro grau, daí que tinha duas manhãs - quando não haviam cursos ou reuniões - em que a levava à escola. E era uma delícia! Desyrée estava numa fase engraçadíssima e conversávamos o percurso todo! Ida e volta. Pena que era pertinho, um quilômetro mais ou menos, mas era encantadora aquela caminhada! E, quando ela estava na quinta série, comecei a trabalhar na escola em que ela estudava, daí que ficou tudo muito melhor, muito mais próximo, muito mais partilhado!
       E agora, como a vida é uma roda, como estamos sempre em círculos, como é tudo um bate e volta, como temos que retribuir as bençãos que recebemos, cá estou  envolvida em... levar netos à escola! E tem sido aventura em cima de aventura! O caminho até a escola é feito a pé (aproximadamente um quilômetro e meio), passando entre camelôs, barracas de frutas, legumes, peixes, siris, temperos, ervas, quinquilharias. Ah, e tem os cachorros sem dono, carentes e esfolados, que às vezes, muito às vezes, nos assustam. Muitas coisas são vistas, percebidas, aprendidas. Tem mesmo muita coisa, tem tanta coisa que tem até... sabem mais o quê?  A Ponte que Treme! Rssssssssssssss Uma velha ponte sobre o rio Pavuna, que quase ninguém nota que é uma ponte, somente quando se vai caminhando do lado direito da rua (direito para quem caminha em direção a São João de Meriti, município vizinho do Rio de Janeiro, separado exatamente por esse rio!). Então podemos ver aquela água preta (não, não é o rio Negro! Rssssssssssss) e fedorenta, deslizando com dificuldade - devido às caixas de papelão, copos, garrafas, sacos plásticos e toda espécie de lixo jogados no pobre curso d'água.  A mureta é feita de uns tubinhos de ferro enferrujados e com o espaçamento, entre um e outro, tão imenso que até um hipopótamo passa naqueles vãos! Mas tem beleza naquela sujeira, acreditem! Numa das margens do rio há o muro do prédio do SESC - que tem a metade inferior de tijolo e concreto e a parte superior com grades verticais de ferro. Algumas árvores plantadas daquele lado (dentro do terreno do SESC) pendem seus galhos, que se avolumam a cada dia, sobre a água fedorenta. E, adornando a galhada meio verde, meio cinzenta (de poeira e fumaça de combustível), podemos ver várias garças empoleiradas, às vezes sete ou oito, enquanto meia dúzia, ou mais, fica estacionada - algumas apoiadas em uma só perninha - naquele rio, nos espaços onde o fundo é quase rente com a margem. São aquelas garças, alvas como algodão, que nos fazem ter a dimensão da profundidade quase inexistente em alguns pontos do rio (por quê? Ah, excesso de lixo, falta de limpeza, falta de educação, falta de governo!). E também são essas belas, elegantes, suaves e generosas garças (que ali surgem para se alimentarem dos detritos de peixe que os vendedores despejam no rio) que nos fazem praticar matemática quase que diariamente: é um tal de contar quantas estão nas árvores, quantas estão na água, quantas a mais ou a menos haviam ontem. E hoje? Quantas são? Quantas voaram de repente?
       Bem, o rio passa por baixo do asfalto da rua, no trecho após os vendedores de peixe,  siri e mexilhões. Vamos sempre pelo lado que tem a tal mureta corroída e vazada, que é o lado que se vê o rio (do outro lado da rua é um estacionamento, o rio passando embaixo sem ninguém dar conta de tal fato!). Por que vamos sempre pelo mesmo lado? Ora, no meio da ponte, do lado da tal mureta, quando passa um ônibus ou caminhão, sentimos a calçada tremer! Daí, apelidei aquele trecho de A Ponte que Treme, para tornar a caminhada para a escola bem excitante e "perigosa". Todos os dias em que os levo à escola (pelo menos três), paramos no meio da calçada, bem na direção do centro do rio, e sentimos a ponte tremer sob os nossos pés! Confesso que sempre me ocorre não ser uma brincadeira segura: vai que a ponte no treme-treme, desaba? Rssssssssssssssss Se há tempo, ou seja, se não estamos muito em cima da hora, podemos sentir umas quatro ou cinco tremidas, se não, temos que torcer para passar por ali no mesmo instante em que um veículo pesado: a parada é ligeirinha e a tremida fica garantida! Às vezes, após uns dez passos , um de nós olha para traz e percebe a vinda de um "busão"! Aí, é uma ré garantida! E correndo e dando risadas! Magnífico!
       Amanhã é dia. De passar sobre a Ponte que Treme segurando aquelas mãozinhas miúdas, macias e frágeis dentro das minhas - já enrugadas, veias saltadas, ossos entortando-se, doloridas: contraste harmonioso entre a vida que começa e a que ainda, graças a Deus, pode agasalhar!

       Cléa Siqueira

sexta-feira, 3 de maio de 2013

Eu-bicho

Sou um bicho, às vezes manso, outras desconfiado, outras carente ou relaxado, ah, sou um bicho que nem sempre se conhece e nem sabe o que fazer. Mas sou um bicho do bem, com certeza (embora dê, de vez em quando, umas mordidinhas): sou "Peixes".

       Eu-bicho estou terrível! Penso que dinossauro (aquele mais furioso, o tal do Rex?) é fichinha perto do bicho que estou! Na verdade, bicho sempre fui. Vários bichos.  Mas, olha, ando misturando bicho do mato, bicho preguiça, bicho cachorro, bicho lacraia... bicho elefante... estou sinistra? Medonha!
       Meus eus-bichos... Atualmente meu-eu bicho mais intenso, mais poderoso, mais influente, tem sido o bicho boi: tenho ruminado horrores!!! Um vai e volta sem fim! Começo um pensamento querendo concluir a questão. Concluo nada! Nem alinhavo consigo passar, às vezes! Que dirá arrematar a questão! Então mastigo, mastigo, mastigo, engulo. E volta tudo! Torno a mastigar, mastigar, mastigar e... um boi! Um boi é o que tenho sido nessas horas, um belo de um ruminante! Tem coisas (atualmente muitas para mim) que são difíceis de digerir. Fico conversando com meus míseros botõezinhos sobre o comportamento surpreendente que nossos companheiros de jornada nos impõem. Em como nossas vidas são modificadas pelas atitudes das outras pessoas. Em como somos arrogantes em pensar que "organizamos" nossa vida. Em como somos tolos ao julgar-nos livres  de qualquer compromisso afetivo, social, moral pelo simples fato de comunicarmos que não o queremos mais. Em como somos mesquinhos e pequenos quando buscamos apenas a satisfação de nossa vontade pensando que somos capazes de viver sem vínculo algum com quem quer que seja! Ninguém vive só! Muito menos se criou uma família - não importa que a família neste século não corresponda mais ao molde do século passado. E vou e volto na minha mastigação. Não páro.
       Às vezes também sou uma velha tartaruga cuja carcaça é a prova de uma existência cheia de cicatrizes. Andando com lentidão. Mas que se disponibiliza a carregar o peso de muitas coisas. Falo assim porque já vi pessoas subirem em cima de velhas tartarugas para provarem que aqueles cascos são uma fortaleza: resistem até mesmo a ridícula prepotência de um adulto que não as vê como seres vivos (que devem doer com aquele golpe), mas como uma espécie de rocha que, inerte e familiar, não reclamará do abuso! Sou a velha tartaruga que agradou crianças, participou de suas brincadeiras e hoje, esquecida na maior parte das vezes, é perdida no quintal da casa por dias, até que se lembrem dela. Às vezes sinto a solidão dessa velha tartaruga.
       Curioso e irônico é que, embora tenha tido e convivido com bichos na maior parte da minha vida, a eles nunca  dediquei minha paixão. Um amorzinho sereno, não mais. Sempre os temi de forma geral. Ou morria de pena. Faltava-me coragem para vê-los sofrer, frágeis, sem salvação ou misericórdia. O certo é que não tenho cachorro, gato, peixinho, passarinho... uns muitos mosquitos contrários à minha vontade. Ocasionais baratas, formigas e moscas. E está além da conta do que suponho merecer! Já é bicho pra cacete!
       Ah, mas eu contava dos meus eus-bichos... e penso que neste exato momento, sou o famoso cachorro que caiu do caminhão da mudança: dói tudo! Ossinho por ossinho! Uma canseira que nem sei de quê! Uns esfolados a arderem! A vista embaçada sem distinguir o bendito caminhão da vida que, com a porta mal fechada, permitiu meu tombo! O irônico é que eu-cachorro caído, nem consigo ganir... pra quê?

Cléa Siqueira

quarta-feira, 28 de novembro de 2012

A Dor da Minha Dor



       Olhos nos olhos, assim, bem direto:
       - Vou embora. Gosto de você, mas só como amiga, não tem jeito!
       A princípio nem entendi! Como? Não gosta mais de mim? Gosta só como amiga? Deixei de ser a mulher, a esposa, a amante? Como assim? Deixou de me amar? Quando? Em que momento? O que foi que fiz pra isto?
       Isso aconteceu há vinte e nove anos. E era a quarta vez que acontecia. O meu casamento já abrigava esses desencontros dentro do pouco mais de oito anos de acontecido. Minha primogênita tinha sete anos e a caçula era um bebê de um ano e um mês. Das duas, a que sempre expôs a imensa dor que sentia com a ausência daquele pai que partia e voltava, voltava e partia, era a mais velha. Sofria, sofria, sofria. Chorava cântaros de saudade. E, depois da quarta e última separação, ele sumia, sumia, sumia. Ficava um ano, dois, até três sem aparecer para vê-las. Às vezes eu tinha a impressão de que ele não as reconheceria na rua se as encontrasse com outra pessoa. Principalmente a caçula, da qual se afastara quando ainda era um bebê. Ela era uma completa estranha para ele: não sabia de sua voz, de seu cheiro, de suas expressões de alegria,  de tristeza, da carinha de febre ou de medo. A mais velha curtia sua ausência escutando músicas de John Lennon (que ele adorava e tinha até semelhanças fisionômicas) e chorava copiosamente.
       O término de um casamento é muito doloroso quando ainda gostamos do parceiro. E é mais doloroso ainda quando ouvimos desse parceiro, que está indo embora, que não nos ama mais ou que talvez nem tenha nos amado, tendo confundido amizade e tesão com amor. E eu ouvi. Por quatro vezes. Burrice? Falta de auto-estima? Ingenuidade? Distúrbio mental? Não vou deter-me mais em minha história. Nesse momento ela é apenas necessária para alinhavar o que me fez ficar recolhida por esses dias.
       Minha primogênita, a mãe dos meus netos adoráveis e amorosos, casou-se há treze anos, após dois anos de namoro e noivado. Com as minhas economias fiz, do dia do seu casamento, um conto de fadas para a jovem romântica que aprendera a amar os Beatles e os Rolling Stones como seus pais, melhor, como seu pai. E naquele genro, responsável e atencioso, jamais percebi um traço sequer de possibilidade de que a minha filhota fosse repetir a minha história. Eram felizes, assim me parecia. Não felizes daquela felicidade irreal, imaginada, fantasiada, teorizada: também tinham pequenas rusgas do dia a dia de qualquer casal, aliás de qualquer ser vivente que co-habita. Afinal somos seres diferentes uns dos outros, graças a Deus. E onde não combinamos, o amor encontra o jeito de harmonizar o fato.
       Mas não sou a pitoniza do oráculo (embora neste momento quisesse ser). Portanto, caí de bunda na terra quando, em prantos, há três meses, minha filhota, minha flor de maracujá, contou-me que o marido tinha lhe pedido o divórcio. Motivo? Não a amava mais. Não combinavam mais. Havia saturado do casamento. Queria viver a sua vida e cuidar de si e dos seus sonhos. Onde não mais cabiam uma esposa e dois filhotes. Mas, e as crianças? Perguntou-lhe minha filha, aflita e doendo. As crianças? Ah, respondeu, não são o centro do universo, se acostumam.
       Há três meses. Sempre soube que não podemos poupar nossos filhos, nossos tesouros e maiores bens, das dores e mazelas que têm que passar. Enquanto pequenos, tentamos e, às vezes, temos um certo sucesso. Mas, depois, principalmente no caso em questão, só podia e posso ouvi-la, secar suas lágrimas, fortalecer sua auto-estima, caminhar com ela como fazia quando era bebê: segurando-lhe doce e firmemente a mãozinha (ainda tem as mãos pequenas, alvas, finas e delicadas). E, para ajudá-la nessa nova aprendizagem, revisito minhas feridas cicatrizadas, percorro trilhas como quem faz o caminho de volta. 
       Que irônico! Ela sentiu a dor do abandono do pai. Eu senti o abandono do homem. Ela sente a dor do abandono do homem. Eu sinto a dor de vê-la machucada e atônita porque não entende que o homem, que prometeu jamais agir como o seu pai lhe fizera, repete o mesmo padrão. Então entendo a dor de meus pais ao me verem sendo abandonada com duas filhas, ao me verem sofrer porque julgava-me o pior dos fracassos e transformava-me numa espécie de espectro com forças suficientes apenas para sobreviver naquele tempo. Como doeram os pobrezinhos dos meus pais com tudo o que me aconteceu e às meninas! Vivi, como mulher, a dor do desprezo do meu marido-amor e, como mãe, o sofrimento de minhas meninas que transformavam-se em órfãs de pai vivo (que mania que certos homens têm de, abandonando suas mulheres, divorciarem-se também dos filhos!). Agora, vivo o papel dos meus pais: sou a mãe e a avó que se esgarça para reerguer a filha e os netos que sofrem o abandono.
       São dores da alma, da emoção, do psicológico. Há muita gente passando por isso, bem sei. Não sou a única nem serei, lamentavelmente. Outras avós, mães e outros filhos, ainda doerão. Um coração partido assim, deste modo cruel - deixar de ser amado sem um motivo que a nós pareça lógico e consistente e não apenas o "saturei" - leva um bom tempo no CTI, sei disso. Cura, também sei disso, mas a cicatriz vez por outra (em situações deste tipo, por exemplo) volta a arranhar como se existissem pontos que a carne não absorveu.
       Também sei que, perto das dores de mães a velarem os corpos rígidos pela morte ou os corpos doentes de seus filhos, ainda tenho muito a agradecer. Como falei na postagem anterior. Agradeço a dor que me faz amar a inteireza do corpo, da alma, do psicológico, da moral.. Agradeço a oportunidade de poder servir, ainda com discernimento e saúde, a vida, através da ajuda à minha filha e aos meus netos. 
       A dor da minha dor curva-me perante a divindade e me faz agradecer e cantarolar "Deus está aqui, Aleluuuia, tão certo como o ar que eu respiro, tão certo como o sol que se levanta...!"
       
        Cléa Siqueira