quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

"...não me leve a mal...


        ... hoje é carnaval!" e eu queria que fosse para sempre! Para sempre, mas do jeito que vi!
       Com os olhos embaçados, com este trecho da música em meu coração, desço a Serra de ônibus e vou lembrando... da tarde de sol, do céu azul, infinitamente azul, da brisa fresca abraçando a todos que ali estavam naquela praça singela. Haviam crianças grandes e pequenas e pequenitas e médias e carentes e supridas e saudáveis e doentes. Haviam jovens que eram crianças, velhos que eram jovens, até jovens que eram velhos! Pobres, remediados, classe média, talvez algum rico disfarçado, não sei. Havia chorinho, marchinhas, cantigas de roda e até baião em homenagem ao Gonzagão! Um conjunto musical de nome interessante - Meu Chapéu Virou Pandeiro - que tocava uma belezura, com um repertótio varandão da saudade de tirar o chapéu e virar mil pandeiros!
       Ah, tinha tanta coisa lá naquela praça! Tinha bêbado adormecido, na borda do chafariz desligado, com o cachorro se aconchegando em seus costados; confetes, muitos confetes que voavam de mãos diversas para o ar e do chão, pelas mãos miúdas, para cima das pessoas; vendedores de sorvete, de balões e de pistolas d'água; fantasias de palhaço, bailarina, pirata, odalisca, super-herói, monstro, e as bermudas, os shortinhos, as camisetas coloridas, recortadas, customizadas, emperequetadas, tudo entremeado de improviso e de alegria. Tinha tanta coisa lá na praça...!
       Lembro da hora em que olhei para o lado direito e dei de cara com uma fisionomia familiar. Busquei nas reentrâncias da memória. Ora, ora, era a mesma mulher que eu vira, há uns três meses no banheiro do shopping! Na ocasião o encontro fôra algo quase medonho porque a mulher, ao entrar no banheiro ao lado do que eu entrara, exalava um odor insuportável! Cheiro de urina, sujeira, fezes, algo assim de despertar o asco. Ouvi-lhe a voz que resmungava coisas que não se entendia : parecia numa conversa eterna com seus míseros botões. Pela parte de baixo da divisória, entre os banheiros, deu para ver que colocara sua bolsa - grande, desses sintéticos cor bege - diretamente no chão que, por sua vez, estava molhado (possivelmente de urina, fato muito comum em banheiros públicos). Saí antes dela do recinto. Mas tornei a encontrá-la, minutos depois, a perambular pelas ruas. Pude observá-la melhor. Cabelos lisos, curtos, acinzentados, é,  um grisalho cinza pela falta de limpeza. Baixa. Sem dentes. Talvez a minha idade ou até mais nova. Continuava com aquela conversa do banheiro. Perguntei-me quem poderia ser o interlocutor invisível. E ela? Seria senil ou bêbada? Moradora de rua? Uma débil mental que fugira de casa? Tinha casa? E, daí, passeei em conjecturas sobre a sua vida, aquela vida que desconhecia, mas que desfilara em frente à minha e me fazia matutar.
       Havia me esquecido daquele dia!  Agora, ali estava ela a sambar, feliz da vida! Retornava majestosa e fluía entre as pessoas carregando aquele mundo só seu! A mesma roupa: uma legging preta, sandálias havaianas, uma camiseta rosa sem mangas, um casaco bege aberto na frente e a mesma bolsa , também, no ombro esquerdo. E gingava suave, faceira, risonha, feliz. Na verdade, deslizava... até pôr-se à frente de uma outra senhora - esta o extremo oposto à ela : bem bronzeada, maquiada, bermuda e camiseta de boa qualidade, sandálias modelo anabela, também caras, bijuterias de primeira a adornar-lhe o colo, braços, mãos e dedos - e deixar-me com a respiração suspensa por segundos. Sorridente, gingou e rodopiou. Sorridente, estendeu os braços para a sua antítese. Observei-as, algo assustada e curiosa com o que estava por vir, e pude notar, na minha velha amiga de banheiro, um molhado que lhe descia do sexo ao tornozelo. Pensei em xixi. E lembrei do seu cheiro peculiar, lá no banheiro do shopping.
         Foi aí que vi o mais bonito, daquela beleza que não vai embora, que é de guardar para sempre. Uma lição de humanidade : pôr em prática aquele tradicional "tratar o próximo como gostaríamos de ser tratados" (mais uma que se repete, pra decorar mesmo!). A senhora bem vestida sorriu-lhe, estendeu-lhe os braços e, carinhosamente, envolveu-a acompanhando-lhe a dança. A senhora e a mendiga, felizes, risonhas, entregues naquele momento. Eram irmãs comungando alegria, mesmo na festa dita profana.

        Cléa Siqueira

22 comentários:

  1. Dificil ver isso né amiga, até me arrisco a dizer que por várias vezes senti receio de alguns mendigos, maltrapilhos, mas asco, jamais. Somos todos iguais e seres humanos devem ser respeitados. O receio que sinto de alguns na verdade, é por culpa de outros que são na verdade malfeitores que roubam o outro. Mas por várias vezes, já alimentei e dei de comer (jamais recusei) as pessoas que batiam na minha porta, e por várias vezes pensei o que será que houve com aquela pessoa, para estar ai abandonada, suja, e talvez por dentro tão carente de atenção e carinho? Bela visão vc teve, e belo ser humano a senhora bem vestida.Como vc disse foi um momento de irmandade, solidariedade e respeito pelo outro, coisas que infelizmente não vemos mais nos dias de hoje. Adorei seu post como sempre. Bjos querida. Isso, é papo pra dias e dias hehe

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    1. Pois é, menina, foi um momento especialíssimo o que vivi. Aliás, vivo muitos semelhantes a este.
      E, francamente, já tive nojo sim de alguns semelhantes, embora estivesse compungida com a situação em que os vi. Mas é mais físico do que emocional. Até costumo dizer que uma das profissões que mais admiro é a enfermagem, justamente por isto. O enfermeiro lida com o pior do ser humano : sua parte podre, estragada, seus maus cheiros, seus dejetos e, para lidar com isto sem retirar do outro a sua dignidade, só com muito amor no coração, não é ?
      Bjssssssssssssssss, quérida! Deus a abençoa!

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  2. Pois bem minha querida Cléa, é incrível como estamos a aprender um pouco mais sobre nós mesmo em situações das quais nem imaginamos.
    Belo post, e belo exemplo foi dado por está mulher.
    Beijoss doces a ti!

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    1. E não é?!!! Aprendemos sempre e não nos conhecemos nunca por completo!
      Talvez por isto se diga tanto que a vida recomeça a cada dia que nasce, possivelmente é assim. Talvez, por isto, as lições se repitam diariamente: quem não viu, sempre terá chance de ver, né não?
      Bjssssssssssss doces procê tb, quérida!
      P.S.: Belo exemplo mesmo, a ser seguido!

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  3. Ichiiiiiiiiiii, nestas horas e com estas histórias me sinto miudinha....
    Falta muito para eu merecer o reino dos céus (se é que existe).
    Bjs

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    1. Eu tb, querida, eu tb, imagine-me vendo a cena e me perguntando: eu agiria assim, como essa mulher? Seria tão natural e espontânea?
      A estrada é longa, mas temos olhos de ver, coração de sentir, penso que já é um começo.
      Bjssssssssssssss, quérida!

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  4. Menina, que texto maravilhoso, tão rico, tão bem elaborado que passa um filme (um filme bom). Confesso que tenho dificuldades fisicas com o cheiro, luto contra isso. Há uma coisa comum entre todos nós, somos todos diferentes.
    Cut beijos e um final de semana iluminado

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    1. Obrigada, Marta, obrigada pelos elogios ao texto: provam que me fiz entender! Às vezes, tenho a impressão de que as palavras, por si só, não bastarão! Dá vontade de emprestar meu olho para o outro! Loucura? Pode ser.
      Pois é, temos a mesma dificuldade: os cheiros! E tem mais: não apenas os cheiros ruins, às vezes os bons (para os outros, é claro!) me causam vômitos, acredita? Vai entender! Daí que tornei-me fã incondicional da senhora elegante lá da praça!
      Bjsssssssssssssss, quérida!

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    2. São essas e muitas outras coisas que me conquistam aqui, em Friburgo!!!Poder aproveitar de peito aberto a festa de carnaval, sem medo, com meus filhos não tem preço!!!Sentir que todos, todos mesmo (do bêbado a senhora cheirosa e bem arrumada), podem aproveitar do mesmo espaço com civilidade e afeto é muito bom!Faz lembrar o que vez ou outra esquecemos, que somos filhos do sol e por tanto seres de luz.Luz que envolve, que ilumina,que tira das trevas, que aquece, que contagia e que traz alegria.So que nasceu para todos e não para alguns.Obrigada, mãe, por esse lindo texto e por me lembrar de momentos especiais que vivemos juntas!!!

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    3. Não me agradeça, meu amor, agradeçamos, antes, à divindade que nos uniu e nos permite usufruir de todos os momentos especiais que temos, todos mesmo! Até os de picuinha!!! rsssssssssssssss
      E dos momentos, Dadá, é que a vida é feita,vc sabe, por isto nada de desperdiçar! Fazer folia sempre que der. Sempre que der um carnaval, mesmo com quarta-feira de cinzas!
      Bjsssssssssssssssss, quérida, amo você!

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  5. Oi Cléa!
    Que lindo texto.
    Tanta gente se 'achando' o máximo por aí,e num gesto tão singelo,essa senhora bem vestida,deu um show de humanidade.
    Não foi indiferente ou apática.
    É difícil achar alguém assim.
    Poucas pessoas são realmente o Sal da Terra...
    Bjs!

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    1. Também acho que não é comum, mas, de lá para cá, começo a pensar que talvez nós não estejamos observando com atenção as atitudes bonitas que acontecem por aí. Afinal, quando ligamos a televisão, ouvimos o rádio, ou lemos um jornal, as notícias, de um modo geral, são violentas, amargas, trágicas. E não é possível que a maioria da humanidade seja dessa forma podre. Se eu, se vc, somos do bem, é claro que existe um montão, só que não dá ibope!
      Bjsssssssss, quérida!

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  6. Só por esse "espectáculo", já valeu a pena assistir ao Desfile de Carnaval!
    Será que hoje eu entro no Brechique? Bjs. Bombom

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    1. ENTROU!!!
      ORA, ORA, ALELUIA, ATÉ QUE ENFIM!!!
      Ah, querida, como é bom recebê-la aqui! Amei!
      Obrigada, bjsssssssssssss, quérida!

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  7. Oi Cléa, é a Vi, a vida é cheia de lições, só precisamos estar atentos para aprende-las.
    Em um mundo onde cada dia mais as pessoas se julgam melhores que os outros por sua formação cultural,ou por seu dinheiro, ou por sua profissão, ou por ser filho de alguém, ainda existem pessoas lucidas que sabem perfeitamente que todos nós vamos acabar do mesmo jeito,que a terra não faz acepção de pessoas.
    Bom fim de semana, beijos,Vi

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  8. Oi, querida Vi,
    Dizer o que mais? Vc disse tudo! Não há distinção na hora do sufoco: todos são iguaizinhos, iguaizinhos... "és pó e ao pó retornarás", não é assim? Mas, na maioria das vezes, quem é que se lembra disto? Enfim, continuemos.
    Bjssssssssssssssss, quérida!

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  9. Clélita, passando pra desejar a ti um excelente final de semana, com muitas alegrias junto aos seus. Bjocas miga

    Josy

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    1. Ó, minha amiga, pra vc tb um ótimo fim de semana!
      Bjsssssssssssssssssssssss, quérida!
      P.S.: Vê se não inventa muita "saborosisse" aí, na sua cozinha, este fim de semana,tá? Depois eu é que sofro com vontade de provar!!! rssssssssss

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  10. Ei, tudo bem?
    Moça, lógico que já li e continuo lendo o seu blog.
    É que eu, ao contrário de você, não sou tão gentil e não deixo recados.
    Agradeço a sua paciência e curto muito as suas visitas ao meu Blog.
    E, estou sempre por aqui e gosto.
    Beijos do Lau

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    1. Tudo ótimo!!!
      Ai, que bom saber que vc me visita! É que, como não tinha como saber a não ser perguntando... perguntei! O que prova que não sou paciente, portanto não carece agradecer a minha paciência, certo?
      Pode vir que, pelo visto, não saio daqui tão cedo! rssssssssss
      Bjsssssssssssssss, quérido!

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  11. Como é caro ao nosso coração podermos ser testemunhas da bela humanidde que muitos de nós ainda temos. Uma cena digna de filmagem como recordação, embora já esteja perpetuada em tuas linhas claras e sensíveis, Cléa.
    Tenho lido e acompanhado tuas visitas e agradeço por cada uma.No entanto,peço desculpas por minhas ausências devido aos rodopios com os netos.
    Valentina está ótima. Engordou 1/2kg nesses 17 dias, mas tem apresentado cólicas. Começou a ser tratada com homeopatia.No mais tudo bem, só um mundão de afazeres.
    Bjos e ótima semana p/ti,
    Calu

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    1. Não precisa desculpar-se, entendo bem esse mundão de afazeres e rodopios com os netos e eles é que importam mesmo: eles nos eternizarão! Ainda falo de minha avó e conto seu causos para os meus, Miguel ainda não entende muito essa história de ter outras avós que não conhece nem vê, mas Esther - já com sete anos - fala delas como se as tivesse conhecido, uma gracinha! E assim seremos contadas ( e ouviremos lá de cima, que somos um pouquinho do bem, né? Dá pra negociar a estadia no céu, rssssssss).
      Bjssssssssssss, queérida, Deus a abençoa e aos seus amores!

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Muito obrigada por participar do meu blog com o seu comentário.
Bjssssssssssssssssssssssss