sábado, 3 de março de 2012

Janelas na minha vida

  
      Gosto de janelas. Especialmente das que ficam no segundo ou terceiro andar, como as minhas. Minha filha caçula, quando me vê na janela, dá uma provocada : "Aí, Fifi!". Nem lhe dou bola, respondo apenas : "Adoro uma janela!" e adoro mesmo (o que não significa que viva pendurada em uma)! O que me fascina é a possibilidade. Já pensaram nas inúmeras possibilidades de uma janela?
       Uma janela é a possibilidade de realização do sonho ou da idéia. Uma janela é uma das saídas de muitos  tipos de prisão - física, emocional, psicológica. Uma janela pode ser um começo ou o fim de qualquer tipo de história. Uma janela é a testemunha que pode ou não revelar-se. Uma janela é o quadro pintado ou encenado. Uma janela pode ser uma terna recordação ou o trágico desespero. Uma janela pode ser tudo o que se queria ter e já, ou nunca, se teve. Uma janela pode ser a única coisa que nos restou do "depois de". Uma janela...
      Ainda lia no quarto, que dava para a frente da rua, do segundo andar da casa. Passava das onze horas de uma noite fresca, como são algumas noites de abril no Rio de Janeiro. A rua era muito movimentada e desembocava num viaduto, portanto, mesmo naquela hora, o movimento era constante, ainda que em menor volume. Do outro lado da rua, havia um grande terreno baldio - que começava em frente à minha casa e se alongava até a esquina por uns sessenta metros. E, como em todo terreno baldio de uma cidade grande, sobre o matagal ali brotado, foi sendo criado um depósito de lixo. Foi porque lia até tarde, como sempre, que ouvi  um barulho de coisas caindo ou sendo jogadas  (ouvi num espaço de silêncio feito pelo trânsito) do lado de fora. Pareceu-me no tal terreno e logo pensei que mais um deseducado despejava seus dejetos ali em frente. Levantei-me e debrucei sobre o peitoril da janela tentando identificar o que acontecia no terreno em frente.
     Distingui uma silhueta na iluminação precária. Um homem magro, alto, que ia se infiltrando pelo terreno vagarosa e cuidadosamente. Abaixava e, vez por outra, curvava-se. Virava para a parca claridade do poste e observava o que pegara no monturo. Às vezes, após a observação, jogava o que pegara, no meio daquele lixo, num enorme saco que carregava a cada passo que dava por ali ; outras vezes, descartava o que pegara. Era o início da profissão de catador de lixo, do jeito que aprendi nesses últimos tempos. E fiquei ali, por todo o período em que o desconhecido fez a sua pescaria, a observá-lo.
     Tornei-me, por conta de gostar de olhar pelas janelas, testemunha daquele balé. Sim, um balé que seria silencioso, não fosse o ruído dos motores, dos pneus e das buzinas dos veículos passantes. Mas o bailarino solista  não carecia de música alguma naquela dança elegante e suave. A sua carência era de outra natureza : era de emprego, de comida, de justiça social. Triste bailarino de triste sina, o que fizemos por você além de jogar-lhe nossos restos, nossos desperdícios, nossos "não nos servem mais"?
    Tantos anos após vê-lo da minha janela e, ainda, da minha janela, assisto aos seus "herdeiros" - que se multiplicaram como ratos - na mesma catança noturna que ele fazia. Mas não com a mesma leveza, discrição ou elegância. Portam-se como animais - exatamente na posição em que nós os colocamos. Apoderam-se do lixo de forma furiosa, rasgam os sacos, jogam e deixam jogados o que não lhes serve. E vão deixando um caminho de sujeira que só se vê ao surgir do dia. E, ao surgir do dia, como ratos, metem-se sabe Deus onde! Mas os restos da catança estão ali como um cordão incandescente para nos inflamar a vista. Mas de quem? A vista de quem? Como bem o disse Marina Colasanti, "a gente se acostuma, mas não devia...", então, acostumados que ficamos à invisibilidade daquelas presenças, deixamos de inflamar a vista. Não vemos mais. Nem registramos. E esses seres serão observados apenas pelos que ainda gostam de olhar pelas janelas.


     Cléa Siqueira





12 comentários:

  1. Bom dia Cléa :)
    Interessantíssima essa crônica.
    Janelas,são testemunhas de tudo mesmo...
    (De coisas boas,ou não).
    Muito propícia essa frase que vc citou da Marina Colasanti.Tem tudo a ver com o texto.
    Bjs!
    Bom domingo!

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    1. Obrigada, querida Clau, então temos a mesma opinião sobre as janelas! Olha, gosto tanto delas que, se fosse construir uma casa, a escolha das janelas seria um dos maiores desafios! É, não gosto somente de olhar por elas, tb gosto dos modelos que são feitas!
      Maarina é incrível! Vc já leu o livro dela CONTOS DE AMOR RASGADOS? Se não, leia, divino!
      Bjssssssssssss, quérida!

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    2. Nunca li.
      Aliás tem vários livros dela que eu quero ler,em especial:
      "Eu sei,mas não devia".
      Bjs!

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    3. Bom, eu tb: tem vários livros dela que quero ler.
      Além de Contos de Amor Rasgados, já li E Por Falar em Amor, além de trechos de outros. Mas gostei de tudo o qe li dela!
      Bjssssssssssss, quérida!

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  2. Muito bom esse texto Cléa. As janelas muitas vezes nos mostram lindas paisagens e cores, mas tbém mostram o outro lado, acostumamos mais com as realidade do feio que as vezes fingimos não ver, muito mais fácil o lado bonito aquele que não nos compromete né? Bjos querida Ótimo finalzinho de domingo

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    1. Pois é Josy querida, como diz o ditado "filho feio não tem pai!", então nos acostumamos (e não devíamos) a ver sem olhar e, pior, a pensar que não é problema nosso! Mas ,logo adiante, dizemos que todos são nossos irmãos. Sinceramente, ninguém precisa de um irmão que sequer percebe que se existe, né não? Que Deus tenha piedade da nossa miséria de atitudes.
      Bjsssssssssssss, quérida, ótimo finalzinho de semana procê tb!
      P.S.: Ainda não fui ao seu blog hoje (ai, vai me dar vontade de comer o quê???) rsssssssss

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  3. Oi Cléa, é a Vi, a desigualdade social é um assunto muito profundo que tem varias vertentes,gostei da sua abordagem.
    Mais do que continuar na janela da vida como espectadora, devemos atuar para o fim da miséria social.
    Muitos beijos,Vi

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    1. Querida Vi,
      Falar e escrever para outras pessoas o que se viu e entendeu (da janela na vida) como espectadora é, também, atuar para o fim da miséria social! É não se acostumar com o que se vê e sacudir quem já não vê. A palavra, dita ou escrita, é ferramenta de luta para o que quer que seja! Vc, que tão bem escreve sobre essas coisas sabe muito bem disto! Nós já estamos atuando para o fim da miséria social: usando nossos olhos e nossas palavras! Além de outras atitudes que temos no nosso dia a dia, certo?
      Bjssssssssssss, quérida!

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  4. Cléa minha flor de maracujá, saudades de ti amiga e dos teus causos
    Vamos, agita a cachola pra retirar do baú alguns causinhos pra eu ler
    Vc acostumou, agora sinto falta ué hehehe. Bjocas obrigada pela visita, me faz muito feliz ora pois....Bjocas Linda quinta feira pra ti miga

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    1. Não preciso agitar a cachola não, querida, é que estou com umas tarefinhas extras, daí que passo aqui rapidinho e saio. Mas... me aguarde!!!
      Vc tb me faz muito feliz!
      Bjssssssssssssss, quérida!
      Mandei-lhe uma mensagem pelo facebook.

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  5. Oi Querida,tudo bem?
    Como sempre,amo seus escritos,suas histórias e teu jeito de conta-las!
    Acredita que gosto tanto de janelas,que nem coloco cortina nelas?!
    Pois é,pra mim ,as janelas são os olhos da nossa alma,porque é através delas,que enxergamos e não só vemos,o mundo ao redor e o que vai por dentro da gente também.
    Então,minha casa,só tem cortinas nos quartos,que é por conta da luz dos postes de rua a noite,fora isso,nada de cortinas no resto da casa.
    bjs
    Patricia Petro

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    1. Patrícia querida, que saudade! Vc estava fazendo falta por aqui... que bom que chegou!
      Como foram as "férias'? Deu pra relaxar? Tomara!
      Ah, mais uma para o time das janelas! rsssssssss Uso cortinas, mas porque tb as adoro! Só que, em especial as da sala, normalmente estão abertas!
      Bjsssssssssssss, quérida, Deus a abençoa!

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Muito obrigada por participar do meu blog com o seu comentário.
Bjssssssssssssssssssssssss